Consertando o bug

Em busca de manter um ambiente saudável e diverso para jogadores, fãs e patrocinadores, empresas e embaixadores se mobilizam contra preconceitos no universo gamer

Thais Monteiro

Em junho deste ano, a Razer, fabricante de acessórios de jogos eletrônicos, não renovou o contrato de patrocínio com Gabi Catuzzo. O anúncio veio depois que a streamer se envolveu numa polêmica, ao responder a comentários relacionados a uma foto que publicara em seu Instagram, em que ela aparecia montada em um touro mecânico. “Senta em mim, sua gostosa”, “Pode montar em mim à vontade”, diziam algumas das postagens, aos quais ela respondeu: “É por isso que homem é lixo”.

Em nota publicada nas redes sociais, a Razer anunciou que Gabi Catuzzo fazia parte de um time de influenciadores que foram chamados para usar e divulgar os produtos da marca e que seu contrato se expiraria nos próximos dias e não seria renovado. “A Razer Brasil reforça que a opinião dos seus influenciadores não representa ou reflete, necessariamente, a opinião da empresa, que é totalmente contrária a qualquer tipo de discriminação seja ela de sexo, religião, partido político ou qualquer tipo de intolerância ou extremismo”, diz o comunicado. Por um lado, Gabi foi acusada de generalizar os homens em seu comentário, por outro, a Razer foi reprovada por não apoiar a influenciadora, que sofria assédio virtual.

Por muitos anos, o machismo encontrou eco no ambiente gamer, mas só recentemente isso tem ganhado maior repercussão e ações combativas. O mais recente caso midiático envolveu a Globosat. Em julho, o SporTV anunciou Milla Garcia como ganhadora do reality Looking For A Caster, competição que buscava um novo narrador de esportes eletrônicos. A vitória de Milla gerou comentários nas redes sociais do canal e do e-SporTV, canal no YouTube especializado em e-sports, insinuando que a participante ganhou porque é mulher.

Com o intuito de debater o tema e inspirados em outros movimentos como #DeixaElaTrabalhar, “Mexeu com uma, mexeu com todas”, #PrimeiroAssédio e “Não é não!”, a VIU Hub e o SporTV divulgaram um vídeo-manifesto nas redes sociais do e-SporTV propondo que o público deixe de lado “todo o sexismo, toxidade e intolerância que tomou conta da internet, e até mesmo fora dela”. “Ser mulher não lhe garante nada além do direito às mesmas oportunidades e respeito que todo o mundo merece”, coloca a descrição do vídeo. A campanha #PorqueÉMulher ganhou repercussão em conteúdos das demais marcas da Globosat e nas redes sociais de talentos da VIU Hub, além de gamers e de parceiros como a desenvolvedora Ubisoft.

#MyGameMyName expôs assédio e opressão que gamers mulheres vivem durante partidas online

“O game só reflete uma situação que está posta na sociedade. É uma questão de educação e mindset”, afirma Vanessa Oliveira, diretora geral do VIU Hub. “Os jogadores têm um histórico familiar e toda uma bagagem e estão aprendendo a lidar com diferenças. Quando falamos de ambiente online, isso fica mais nítido, até porque você pode colocar uma foto ou nome de perfil falsos. Não é à toa que vemos iniciativas contra o hate na internet, pois ela virou um grande palanque de preconceito. Ainda estamos, como sociedade e como Brasil, num processo de ganhar maturidade para nos posicionarmos no ambiente digital.”

Alessandra Dutra, psicóloga da equipe de e-sports Red Canids e coordenadora de preparação mental do Comitê Olímpico Brasileiro, afirma que questões preconceituosas estão inseridas na cultura do País e numa educação machista. O jogador acaba refletindo comportamentos ofensivos online de forma intencional ou não. Alessandra também pontua que “o próprio gamer carrega um estereótipo de nerd e antissocial”.

Para evitar situações desconfortáveis no ambiente digital, muitas gamers mulheres passara a usar nomes de usuários, fotos e avatares falsos, geralmente de homens, de modo que pudessem jogar online em paz. A iniciativa #MyGameMyName (bit.ly/332yF5f), criada pela Africa para Vivo em parceria com a ONG norte-americana Wonder Women Tech, denunciou o assédio e a opressão que mulheres vivenciam durante partidas online que as levou a disfarçar seu gênero para jogar. A campanha, finalista no Cannes Lions 2018 na categoria Glass, incentivou a diversidade e equidade de gênero convidando gamers homens a jogar com nomes de usuário femininos. A iniciativa ganhou apoio global da ONU Mulheres.
“O ambiente tóxico não faz parte do mundo dos jogos”, afirma Nicolle Merhy, a Cherrygumms, streamer, CEO do clube de e-sports Black Dragons e uma das principais vozes do #MyGameMyName. “Jogos, assim como qualquer outro cenário, são feitos de pessoas. E pessoas são o reflexo de nossa sociedade. Se nossa sociedade ainda tem pensamentos preconceituosos, não seria estranho ver os mesmos pensamentos no mundo dos jogos. Não é ele que é tóxico, é a nossa sociedade.”

De acordo com Monique Lopes Lima, diretora de projetos especiais da agência Africa, a campanha surgiu a partir de um estudo da Ohio University que relata que 94% das meninas que jogam online são assediadas e, por isso, usam nomes masculinos para jogar. “As marcas não podem se esquivar desse e tantos outros temas que precisam de mudanças com urgência. Os consumidores se identificam com marcas que dão a cara à tapa e ajudam a mudar comportamentos. Não existe mais o consumo pelo consumo. As pessoas querem mais e, com razão, as marcas podem mais”, diz a executiva.

Na opinião de Beatriz Blanco, pesquisadora especializada em games e cultura digital, a cultura dos jogos digitais se desenvolveu a partir de fatores que deixam o ambiente complexo. O primeiro é histórico: o segmento nasceu da indústria da tecnologia, que era muito masculina, elitista e exclusivista. O segundo é que, nos anos 1980, a publicidade focou em vender os jogos como para o público masculino. “A partir dos anos 1990, outros perfis começaram a se mobilizar para ter espaço. Primeiro foi o movimento das mulheres e, a partir dos anos 2000, mais intensamente na segunda década do século 21, os LGBTQ+s e negros começaram a reivindicar mais. Agora temos um cenário muito novo por causa das redes sociais, o que é positivo. A questão de gênero era muito acadêmica nos anos 1990”, explica.

Responsabilidade empresarial

A Vivo começou sua trajetória nesse universo patrocinando a equipe Vivo Keyd em 2016, renovando o apoio desde então. Também em 2016 a operadora produziu a websérie Game Changers, sobre o cenário brasileiro dessa indústria. “Justamente por respeitar o setor e estarmos sempre atentos às pessoas que pertencem a esse núcleo que tentamos usar a força da Vivo para debater questões relevantes não só para e-sports, mas também para a sociedade”, afirma Marina Daineze, diretora de imagem e comunicação da operadora.

Na prática, a empresa disse que solicitou ao clube Vivo Keyd que criasse times para outras modalidades competitivas além de League of Legends para ampliar a abrangência e diversidade de jogadores, incluindo equipes femininas. Também exige que os valores de premiações em dinheiro sejam os mesmos para homens e mulheres. “Buscamos olhar com cuidado para todos os pontos sensíveis e tomamos medidas práticas para que nossa presença no setor fosse fortalecida e diferenciada exatamente por conta desse posicionamento”, diz a executiva.

Empresas nativas do universo gamer também têm se mobilizado em prol de maior equidade. A desenvolvedora Blizzard, por exemplo, apesar de afirmar em 2017 que apenas 21% dos funcionários eram mulheres, anunciou programas em parceria com instituições como a Girls Who Code para incentivar a capacitação de garotas especialistas em ciência da computação, além de fomentar a indicação de profissionais mulheres dentro da empresa e criar cotas para diversidade. Em 2017, os grupos minoritários eram 14% no quadro de funcionários da desenvolvedora. A Blizzard passou a incluir ainda personagens LGBTQ+ em seus jogos. A Roit também incentiva equipes diversas e desenvolve conteúdo sobre toxicidade nos jogos.

“Existe uma responsabilidade de todas as empresas que estão na internet de colocar luz nesses temas para refletirmos sobre nossos comportamentos. Nós estamos chamando a sociedade para um diálogo que, na verdade, já existe. Como empresa de conteúdo, temos o know how para explicar o debate e apontar soluções”, propõe Vanessa.

“O fato de essas empresas estarem se envolvendo com a causa só pode ter um impacto positivo”, diz Alessandra. “No entanto, o interessante é ir além do marketing e desenvolver ações educativas com programas voltados à saúde mental, física e emocional.” Beatriz vê como positivo o envolvimento de grandes empresas no debate, mas questiona se essas iniciativas têm como objetivo final a inclusão ou a criação de novos nichos a partir do público-alvo.

No Brasil, algumas iniciativas já olham para questões como classe e acesso à tecnologia, que Beatriz diz serem minimizadas nas estratégias de marcas ligadas ao setor. A convenção Perifacon, por exemplo, levanta o debate de games junto a comunidades de baixa renda. O YoGamers do Bem, do streamer Yoda com instiuições parceiras, busca promover inclusão tecnológicas a alunos de escolas públicas. Um dos projetos mais recentes é o AfroGames, iniciativa que visa incluir jovens da periferia do mercado de competições de jogos eletrônicos.

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