Play no treinamento

Por meio de ambientes virtuais e narrativas lúdicas, empresas desenvolvem programas e campanhas que utilizam a mecânica dos jogos para capacitar seus profissionais e melhorar processos

“Você precisa ler esta página”: Esta frase de tom impositivo pode afastar leitores. Mas se fosse “Leia esta página, descubra o enigma e some pontos para ganhar uma assinatura”? Esse estímulo lúdico tem sido usado por diversas empresas com objetivos tanto externos, como conquistar e fidelizar clientes, como internos, com treinamentos e qualificação de profissionais. A estratégia substitui slides com frases de efeito e formalidades que, não raro, são consideradas maçantes, por uma narrativa que envolve avatares, missões, fases, bônus e pontuações. A ideia é que o aprendizado se torne mais assertivo com o uso do entretenimento e a interação do jogador. “O mundo dos games é um tsunami nos dias de hoje. Todo mundo joga, em praticamente todas as faixas etárias. E quando olhamos para o universo corporativo, as empresas começaram a se perguntar como se beneficiar dos games e seus valores intrínsecos, como a diversão e a disputa, para engajar e desenvolver seus stakeholders, internos e externos”, afirma Guilherme Camargo, CEO da empresa de tecnologia interativa Sioux, especializada em gamification.

Por meio da plataforma Ludos Pro, a companhia ajudou a Vivo a desenvolver duas campanhas internas de treinamento e engajamento de funcionários. Em 2018, o game Ser+, que visa capacitar os atendentes do call center, conseguiu reunir 15 mil colaboradores, que juntos geraram mais de cem interações na plataforma.

Neste ano, a multinacional farmacêutica Sanofi também inseriu gamification em processos de capacitação de representantes de vendas, com a criação de um ambiente virtual. Chamada de “Training Lab”, a plataforma foi criada a partir de uma parceria entre a área de treinamento e desenvolvimento da companhia e a startup Kludo, especializada em projetos de gamification. Os colabores criam seus avatares e realizam treinamento em ambientes em terceira dimensão que simulam farmácias e consultórios médicos. Na mecânica do game, os funcionários se deparam com desafios do dia a dia e desenvolvem habilidades e conhecimento em temáticas como técnicas de abordagem, estratégia de produto, lançamentos, trade shopper, merchandising, entre outras. Segundo Ricardo Malaquias, diretor de excelência comercial da Sanofi, a demanda surgiu do desafio de engajar os colaboradores nos programas da companhia e a necessidade de capacitação de todo o time. “Hoje, sabemos que os modelos tradicionais de treinamentos não são mais tão efetivos e há uma perda natural do conteúdo aprendido. Em alguns casos, mensuramos que até 80% do conteúdo chega e ser esquecido em um prazo médio de três meses”, afirmou o executivo.

Guilherme Camargo, da Sioux: “A movimentação que vejo nos últimos cinco anos mostra que a gamificação não é um modismo. Ela veio para ficar”

A Sanofi revelou que a adesão ao treinamento foi de 80% do time, e a taxa de acerto nos testes do game foi de 90%, o que denota o envolvimento dos “jogadores”. Entre as principais razões para os bons resultados, em sua avaliação, está a disponibilidade do jogo para celular e tablet, já que os representantes podem acessar a plataforma enquanto esperam para serem atendidos nas farmácias ou consultórios. “Com isso, passamos a usar a metodologia de microlearning, trabalhando o conteúdo em pílulas, o que facilita a sua retenção”, reforça. Para Ricardo, uma outra vantagem está na possibilidade da realização de testes seguros para otimizar procedimentos. “O erro é parte fundamental do processo de aprendizado ágil, e uma plataforma de simulação gamificada, como o Training Lab, permite que esses erros construtivos aconteçam dentro de um ambiente seguro e controlado e possam contribuir para uma base de dados analítica, que gere novos insights de treinamento e desenvolvimento à nossa força de vendas”, pontua.

Também em 2019, a Heineken lançou o aplicativo Think, Drink & Play para seus 13 mil colaboradores no Brasil. O recurso foi desenvolvido para reforçar de forma lúdica a importância do consumo responsável de bebidas, um dos principais pilares da estratégia de sustentabilidade da companhia. No game, os jogadores acumulam pontos e podem competir com outro colaborador no modo “duelo”, um quiz de conhecimentos gerais sobre o mundo das cervejas. Os funcionários que somam mais pontos ganham prêmios no final do ano. Gerente de sustentabilidade do grupo Heineken no Brasil, Ornella Vilardo explicou a escolha pelo processo de gamificação para reforçar os conceitos que a empresa quer disseminar de dentro para fora. Para ele, o conhecimento é a principal ferramenta para uma mudança positiva de comportamento. Ao mesmo tempo, entende que a marca tem a diversão como um valor importante em sua cultura corporativa, afinal de contas, os seus produtos pressupõem momentos de descontração. “Precisamos trabalhar com esse mesmo espírito. Por isso, criamos o Think, Drink and Play, uma ferramenta que nos permite falar sobre o assunto com os nossos colaboradores de maneira divertida e interativa, gerando essa reflexão em relação ao consumo excessivo de álcool”, explica.

Maturidade do mercado

Na análise de Guilherme, da Sioux, o momento de grande apelo midiático do mundo dos games, ganhando espaço inclusive nos meios de massa, também impulsiona uma maior demanda por projetos de gamification. Além disso, o crescimento dos jogos mobile democratizaram ainda mais esse universo. Apesar de toda a euforia, o profissional destaca que o mercado brasileiro progrediu bons passos nos últimos anos, mas ainda tem uma grande curva de aprendizado pela frente, sobretudo na comparação com os países mais desenvolvidos na área, como os Estados Unidos. “A movimentação que vejo nos últimos cinco anos mostra que a gamificação não é um modismo, veio para ficar. Existe ainda, porém, muito desconhecimento das companhias sobre o que é a ferramenta e como ela pode ser utilizada”, explica. Em sua visão, vencer essa barreira do conhecimento e da educação do mercado é questão de tempo, seja pelo próprio avanço e relevância que o setor têm ganhado, ou em função de uma nova geração de líderes que chega aos cargos de decisão das empresas, formada por pessoas nascidas em uma época em que o videogames e seus mecanismos já estavam presentes em suas vidas desde a infância.
Guilherme também afirma que, apesar do conhecimento mais raso por parte do mercado, o gamification não tem tido rejeição nas empresas que, segundo ele, estão abertas a ouvir e conhecer mais sobre o assunto.

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