Profissionalização do entretenimento

Crescimento do setor de games impulsiona estruturação das organizações e competições, ampliando oportunidades de conexão com marcas e um público fiel e engajado

Ana Carolina

O mundo dos videogames até poucos anos atrás era visto por muitas pessoas como um hobby de uma parcela nichada da sociedade. Mas, hoje, segundo a Pesquisa Game Brasil 2021, 72% da população brasileira jogam algum tipo de jogo virtual. Com o aumento do público, cresce também o impacto econômico do setor. De acordo com o recente estudo da TechNET Immersive, a indústria dos games está avaliada em US$ 163,1 bilhões, o que já representa mais da metade do valor da indústria de entretenimento, colocando o segmento acima do mercado do cinema e da música.

No Brasil, a receita do setor de games cresceu 12% e o consumo, 20%, em 2020, mesmo em meio à crise do coronavírus, segundo o estudo SuperData. Nesse cenário de expansão, o Brasil é líder de lucratividade no mercado latino-americano, ocupando a 13ª posição no ranking mundial, de acordo com dados da Newzoo. O boom é real: o setor tem crescimento de 11% ao ano, além de expectativa de receita de US$ 200 bilhões em 2023. Com um público cada vez mais abrangente e uma grande movimentação financeira, a profissão gamer deixou de ser um sonho distante e se tornou uma meta real para diversas pessoas.

Ao capturar cada vez mais o interesse do público, os games consequentemente passaram a ser um espaço atrativo para as marcas, sendo vistos como um meio de comunicação e contato com os consumidores. “No game a pessoa está com sua atenção 100% focada naquilo, diferente de outras mídias. Além de ser um espaço onde você consegue falar com grande parte da população. As marcas perceberam isso e viram que ser gamer é um hábito de uma pessoa e não o perfil dela. Eles podem ser de qualquer sexo, religião ou classe social, e consomem diversas coisas, não só jogos. Eles também passeiam, viajam, comem, escutam música, têm uma conta no banco etc. Foi a partir desse entendimento que as marcas se interessaram em estar nos projetos de games”, comenta Yuri “Fly” Uchiyama, CEO da Gamers Club.

Em 2020, a Riot criou um sistema de franquias para o Campeonato Brasileiro de League of Legends (crédito: reprodução/Twitter)

Para o CEO da Druid, Claudio Lima, a entrada das marcas no jogo como patrocinadoras em diversas pontas da atividade ajudou e acelerou a profissionalização do setor, porque os anunciantes começam a exigir dos times uma entrega mais profissional. “Quando uma marca entra no jogo você precisa ter uma certa qualidade de entrega, uma responsabilidade um pouco maior com o que está fazendo. Além do apoio financeiro, que te possibilita ter mais gente participando, uma transmissão um pouco melhor, um melhor pagamento aos atletas etc. Esse impacto financeiro faz total diferença e ajudará o produto do eSports a ser cada vez melhor”, comenta Lima.

Para a diretora de marca e comunicação da Vivo, Marina Daineze, o papel das marcas interessadas no setor deve ser o de atuação consistente, fomentando o crescimento e a profissionalização através de diferentes modelos de patrocínio. A empresa possui uma parceria com o time Vivo Keyd desde 2014, já patrocinou eventos como Brasil Game Show (BGS) e CCXP, e, recentemente, se tornou patrocinadora máster da SPQR, equipe sul-americana de maior destaque no game Fifa (EA Sports). A iniciativa visa, em um primeiro momento, impulsionar e dar visibilidade ao esporte feminino com a ampliação do line-up por meio de uma seletiva.

“Quando uma marca se propõe a apostar em um segmento, ela tem que se envolver diretamente. Não basta simplesmente patrocinar um evento ou fazer uma coisa pontual, tem que ser uma aposta de longo prazo. O ideal é estar presente nas iniciativas sejam elas grandes ou pequenas, nacionais ou regionais, com um olhar de fomento do esporte regionalmente, patrocínio aos clubes, incentivos de line-ups femininos. Para nós, isso é desenvolver o mercado. Olhar para a base, ver o que precisa ser feito e fomentar positivamente um crescimento saudável do setor. É um segmento que, naturalmente, está se profissionalizando. Vemos isso com clareza de 2014 para cá”, pontua a diretora.

Equipe de Free Fire da Vivo Keyd, time patrocinado pela operadora desde 2014 (crédito: reprodução/Facebook)

Crescimento estruturado
Nesse caminho de transformação para o profissional, as organizações, de times a responsáveis pelas competições, começaram a se estruturar. Como exemplo, a Riot lançou em 2020 um sistema de franquias para o Campeonato Brasileiro de League of Legends (CBLOL), proporcionando estabilidade na primeira divisão do campeonato, o que garante segurança para os times. O head de eSports da Riot Games, Caco Antunes, explica que as equipes já vinham manifestando há um tempo que estavam dispostas a investir seus recursos, comprando uma vaga em uma franquia, para garantir valor no longo prazo.

“O investimento para iniciar um time de qualidade é alto. Você tem que ter um conjunto de jogadores grande com reservas e times B para além dos cinco que jogam na cabine, um staff muito extenso, que no começo tinha só o técnico, mas, hoje, tem psicólogos, médicos, preparadores físicos e vários tipos de analistas de estratégia, investimentos em infraestrutura, uma casa para treinar. A folha salarial é muito pesada”, comenta.

O executivo explica que com a possibilidade de rebaixamento, os times corriam o risco de investir para se estruturar e, eventualmente, ao serem rebaixados, sair do radar da mídia. Assim, permanecer na liga e estar sempre em visibilidade pela entrega do CBLOL é uma condição essencial para o negócio. “Esse foi o principal valor, poder estar junto com a primeira divisão do maior eSports que tem hoje no Brasil e no mundo. Isso viabiliza diversos negócios, jogadores querem entrar no time, patrocinadores ficam interessados, muitos times já começam a ter outros negócios como licenciamento de marcas e acordos com plataformas como YouTube e Twitch”, afirma Caco.

Na nova metodologia, os times se inscrevem, são avaliados e selecionados pela empresa, através de questionamentos sobre o histórico com os jogadores, os suportes oferecidos e como são tratados os interesses dos atletas, entre outros quesitos. Uma vez dentro da liga, os times precisam obedecer a uma série de critérios como modelos de planos de negócios, estratégia de marca e infraestrutura para os atletas. Segundo os organizadores, o sistema ajudou as equipes a terem uma outra visão de gestão e do cenário de eSports, além de manter o nível de desempenho das equipes calibrado.

Sabíamos que com o modelo de franquia chegando, nos comprometendo com os times e os times com a liga para fazer estratégias bem mais profundas, precisaríamos de uma maior profissionalização de todos os envolvidos. Os times precisaram incrementar sua capacidade de marketing, comercial, gestão de talentos e o desenvolvimento esportivo precisou crescer. O time que ganha tem torcida, quem tem torcida tem impacto, quem tem impacto tem valor”, analisa Caco.

Nos últimos dois anos, tanto a Riot, que precisou trazer profissionais que estão acostumados com produtos mais complexos, como os times, tiveram uma grande demanda por colaboradores mais sêniores e por incrementar e diferenciar suas operações de mercado. Antes das franquias, como existia o risco de rebaixamento e, consequentemente, um planejamento de curto prazo, não havia uma necessidade ou um incentivo para que um time investisse e, de fato, se tornasse profissional, porque perder tempo com a ineficiência de gestão ou de processo poderia significar grande perda financeira.

“Apesar de termos o CBLOL há 10 anos, nos últimos dois anos, a nossa relação de parceria tem sido muito melhor, porque temos encontrado discursos muito mais elaborados nos times para fazer projetos mais complexos. Temos trocado muitas experiências como, por exemplo, sobre o formato e o calendário da liga. Hoje, a capacidade de conversa é muito superior, pois encontramos profissionais muito mais preparados para o negócio do esporte o que, no Brasil, é algo complexo. Tirando o futebol, vemos que os outros esportes são fragilizados e a nossa aposta é que os eSports podem ser como o futebol: grande, com investimento e bem profissional”, afirma o head da Riot.

Público fiel
Assim como o futebol, os eSports são modalidades muito acompanhadas pela torcida. O fanatismo brasileiro, aliado ao poder da internet, geram ídolos e figuras do esporte tão grandes quanto as do campo, movendo sua audiência por onde passa. “Há cinco anos você já tinha eSports, ídolos e pessoas famosas, mas a proporção era outra. Antes eles tinham uma média de um milhão de seguidores, hoje, alguns têm uma média de 20 milhões. Cinco anos atrás não passava na Globo, hoje, passa. O game deixou de ser um nicho e virou uma realidade para todo mundo”, pontua Lima. Bruno Goes, mais conhecido como NoBru, é campeão mundial de Free Fire, cofundador do time de eSports Fluxo, primeiro embaixador global de games do Tiktok e acumula 11,9 milhões de seguidores no Instagram, enquanto Gabigol, jogador do Flamengo e da seleção brasileira, por exemplo, possui 8,6 milhões.

“O brasileiro fã de esportes gosta muito de ganhar. Ele não necessariamente gosta do esporte, mas gosta de ter um representante forte lá fora ganhando. Nós vemos isso ciclicamente se olharmos para outros esportes como como o surfe, agora com o skate, como aconteceu com o fenômeno Guga. As pessoas não gostavam tanto de tênis, elas passaram a gostar e entender porque tínhamos alguém ali que foi campeão de Roland Garros, é essa a mentalidade”, comenta Filipe Makarausky, diretor de eSports da PaiN Gaming. Para o executivo da equipe, o entretenimento de campeonatos brasileiros de eSports também move essa grande paixão. Apesar de cada telespectador torcer para um time específico, ele gosta de assistir as competições independentemente de quem está jogando, sente prazer em colocar a camisa do seu time e ir à rua.

Diante desse cenário crescente de fanatismo, surgem outras oportunidades de negócios. A Gamers Club nasceu quando os fundadores enxergaram uma dificuldade dos jogadores em encontrar um lugar onde pudessem aprender, conhecer outras pessoas para formar uma equipe, encontrar adversários para praticar, ter a visibilidade do calendário de campeonatos e atrair mais telespectadores para as competições.

“Assim como nos esportes tradicionais, quanto mais espectadores, maior a chance de ter patrocinadores envolvidos ajudando a fomentar a modalidade. Nós entendemos que esse ecossistema precisava de um apoio para ter uma melhor organização. A Gamers Club surgiu para ser esse hub para conectar jogadores, telespectadores e patrocinadores”, conta Uchiyama, CEO da empresa.

A organização se divide em alguns setores, como Discover, onde os jogadores podem encontrar times e jogadores para formar suas equipes para competir nas ligas semanais; Rankeds e os campeonatos, com premiações aos vencedores e possibilidade de confronto com grandes times da cena; e Games Academy, plataforma com diversos vídeo aulas e estatísticas detalhadas dos jogos de cada participante para trabalhar na evolução do jogador.

“Acreditamos que assim como nos esportes tradicionais, os eSports são ferramentas de desenvolvimento pessoal e profissional. Assim como um pai inscreve o filho em uma escolinha de aula de natação ou de dança porque acredita que vai ser bom para a criança se comunicar melhor, socializar, aprender a perder, se esforçar, ter disciplina e espírito de liderança, nós enxergamos que essas ferramentas também podem ser obtidas através dos eSports”, explica.

Para competir nos games também é preciso se esforçar, planejar seus horários, se comunicar com seu time, treinar etc. A plataforma Games Academy oferece vídeoaulas com diversos jogadores profissionais que ensinam como o jogador pode melhorar dentro do jogo e se comportar em equipe, ajudando no desenvolvimento do jovem. “Assim, como em qualquer esporte tradicional, nem todos vão se tornar jogadores profissionais. Mas queremos que aquele período em que ele ficou investindo seu tempo, além de ser algo que o divirta, também seja algo que gere aprendizado”, pontua Uchiyama.

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