Do gramado para as telas

De olho em expansão da base de fãs, modernização da marca e captação de parceiros e novas receitas, grandes clubes do futebol brasileiro investem nos jogos eletrônicos e elevam o nível do e-sports no País

Por Renato Rogenski

Você sabe qual é o atleta do Corinthians mais popular no Instagram? Quem chutou Cássio, ídolo do futebol no clube há quase 10 anos, errou por muito. O dono da maior legião de fãs na rede social se chama Bruno Goes. Mais conhecido como Nobru, ele tem 6,5 milhões de seguidores, cinco vezes mais do que o goleiro e não defende as cores do time paulista nos gramados e sim na tela dos smartphones, nas competições do game Free Fire. Essa comparação é apenas um dos detalhes que ajuda a entender não somente o alcance e o potencial de desenvolvimento do e-sports no Brasil, como o investimento cada vez maior dos clubes tradicionais do futebol na modalidade.

Segundo o estudo Global Esports Market Report, da Newzoo, principal referência de pesquisa para o segmento, a receita do mercado de esportes eletrônicos em todo o mundo deverá ultrapassar US$ 1 bilhão em 2020. Já o público total de e-sports deve chegar a 495 milhões de pessoas. Atrás apenas de Estados Unidos e China, o público brasileiro representa o terceiro maior em audiência nas competições. Em território nacional, o resultado é fruto de um mercado que tem buscado recursos para se estruturar, com o aporte de investidores, marcas e parceiros de mídia como Globo e ESPN, que aumentaram nos últimos anos suas coberturas e transmissões de jogos eletrônicos.

Ao conquistar o título mundial de Free Fire, em 2019, Corinthians faturou uma premiação de US$ 400 mil

De olho em uma fatia de mercado que só cresce, os grandes clubes do futebol começaram a montar suas estruturas e equipes de e-sports em modalidades como League of Legends, Counter-Strike: Global Offensive (CS:GO), FIFA, Pro Evolution Soccer (PES), Rainbow Six Siege e Free Fire. No mundo, PSG, Barcelona e Manchester City entraram com força nas disputas virtuais. No Brasil, alguns dos principais exemplos são Corinthians, Flamengo e Santos.

Com a expertise de décadas de atuação no futebol, essas organizações esportivas tentar utilizar parte de sua estrutura e metodologia de treinamentos e seus modelos de captação de recursos para conquistar novos públicos e tornar o e-sports um braço ainda mais rentável no futuro. Para isso, cada um desses clubes vai precisar entender as semelhanças e diferenças entre o futebol e os jogos eletrônicos, com todos os seus desafios e oportunidades, em quatro tópicos básicos: gestão, infraestrutura, contexto de mercado e nível de profissionalização.

Gestão e profissionalização
Um clube de e-sports bem estruturado possui praticamente a mesma demanda de recursos e profissionalismo de um esporte convencional. A experiência de já ter um time de futebol e gestores que entendem essa dinâmica facilita o trabalho com os jogos eletrônicos. Em termos estruturais, a gestão é geralmente dividida em diversos departamentos, começando pelo esportivo, com estrutura física adequada para diversas modalidades (games diferentes), comissão técnica, psicólogo esportivo, fisioterapeuta especializado, nutricionista esportivo, preparador físico e um manager que funciona na prática como um diretor esportivo de um esporte tradicional.

Essa composição ainda precisa ter os departamentos jurídicos, contábil, de comunicação, marketing e comercial. Alguns clubes ainda possuem áreas de e-commerce próprio, também. “A maioria dos clubes ainda não possui esta estrutura completa, mas com a evolução do cenário e profissionalização das organizações, muitos deles estão evoluindo para atingirem esse estágio de maturidade”, explica Leo di Prado, CEO do Santos HotForex, divisão de e-sports do Santos Futebol Clube.

A entrada na modalidade aconteceu ainda em 2015, quando a entidade esportiva fechou uma parceria com o Dexterity Team. Mas, apenas em 2018 o clube da baixada paulista criou uma divisão própria de jogos eletrônicos, em parceria com a Select e-Sports, empresa especializada na gestão de equipes do segmento. Apesar de jovem, a nova estrutura já possui alguns títulos de relevância nacional e continental, em modalidades como League of Legends, Counter-Strike Global Offensive (CS:GO) masculino e feminino e FIFA no modo ProClubs. Em janeiro de 2020, o clube fechou um contrato que inclui patrocínio master e naming rights com a corretora global de investimentos Hotforex.

O contato com a base de fãs da modalidade em geral também segue parecida com a de esportes tradicionais, e gira em volta do engajamento destes torcedores com o clube e seus jogadores, tendo nessa mesma relação o endosso a marcas e todas as outras oportunidades de geração de receita. Na operação, o relacionamento com atletas, o gerenciamento da estrutura de treinamento, logística, rotina, equipe de suporte, também são itens similares ao futebol, como afirmam os dirigentes de Corinthians, Flamengo e Santos.

Por outro lado, nem tudo é parecido com o mundo do futebol. Uma das principais diferenças está no calendário e o volume de eventos presenciais. O torcedor do esporte praticado nos gramados consegue ir com frequência ao estádio, para acompanhar o seu time de perto. No e-sports, ainda são poucos os eventos presenciais abertos ao torcedor. E as grandes competições são acompanhadas via streaming, principal força de audiência da modalidade. Por outro lado, no e-sports há uma maior quantidade de eventos globais que um clube disputa em um ano, o que gera maior internacionalização da marca, e consequentemente dos patrocinadores que ajudam a suportar essa estrutura.

Ainda na questão da relação com a audiência, a competição e o desempenho são atributos importantes, mas tem um peso menor que no futebol, onde muitas vezes os campeonatos são os únicos pontos de contato do clube com sua base. Nessa comparação, as equipes de esportes eletrônicos contam com uma geração de conteúdos mais pulsante, fazendo uso da força e o alcance das mídias digitais que a comunidade de e-sports já está acostumada a consumir. “Além disso, os jogadores atuam de maneira muito mais direta na comunicação, tendo todos eles seus próprios canais de Youtube, o que não acontece geralmente no futebol”, lembra Alex Watanabe, gerente de marketing do Corinthians. O clube forma suas divisões em e-sports como sócio de uma operação junto com a IGC (Immortals Gaming Club), que hoje conta com o Corinthians Free Fire, campeão do mundo em 2019 e eleito o time do ano no Prêmio eSports Brasil.

Ligas entram no jogo

Não somente os clubes de futebol têm voltado suas atenções para o mercado de e-sports, como também as ligas profissionais especializadas no esporte bretão. Em fevereiro deste ano, por exemplo, um pouco antes da pandemia que assolou o mundo, o Palácio de Neptuno, em Madri (Espanha), foi completamente customizado para receber os 34 clubes que disputam a eLaLiga 2020, versão virtual da liga espanhola de futebol. Na ocasião, quase 60 jogadores viajaram à cidade para receber suas camisas de jogo da competição oficial patrocinada por Santander, que detém o naming rights da primeira divisão e SmartBank, que tem o mesmo contrato para a segunda divisão. “Temos a ambição de nos transformarmos em sinônimo de inovação tecnológica, e sempre ampliar nosso público. A entrada da LaLiga no e-sports representa isso. Nem tanto pela nova opção de geração de receita, mas por continuar ajudando no crescimento do futebol em nível local e global. Os valores do futebol são, sem dúvida, a forma ideal de construir um mundo melhor”, afirma Josué Sánchez, international PR manager na LaLiga, que trabalha com foco na América Latina. O profissional também lembrou que o mercado de e-sports já provou seu potencial e que, no caso específico da eLaliga, o envolvimento dos clubes na iniciativa, que tem apenas três temporadas, foi vital para o desenvolvimento e crescimento dos projetos voltados para o e-sports na organização. Além da EA Sports, dona do game Fifa, jogo oficial da competição e Santander e SmartBank (naming rights), a eLiga tem como parceiras marcas como Allianz, Hyundai, Visa, Pull & Bear, PlayStation Espanha e Movistar.

Infraestrutura e treinamentos
As instalações, equipamentos e metodologias de treino variam nas diversas modalidades de e-sports. Nas mais estruturadas, os atletas vivem em uma gaming house ou se reúnem em um gaming office, onde fazem pessoalmente seu treino individual e coletivamente o treino tático, estudam adversários e definem como vão jogar. Nas modalidades menos estruturadas, o treinamento ainda é online, com cada jogador em sua residência, geralmente utilizando um software de comunicação, e fazendo virtualmente o mesmo trabalho individual, coletivo e prático.

Esse segundo formato, afirmam os dirigentes especializados, é menos eficiente pelas distrações que o atleta tem em casa, o que pode resultar em falta de foco. “Temos um CT de treinamento onde os jogadores, que vieram de diversas regiões do Brasil, moram e treinam. A rotina de treinos é diária e possui muitas semelhanças com relação a estrutura do esporte tradicional, com treinos táticos, treinos de jogo, reuniões com a equipe de psicólogos e o restante da equipe de suporte”, conta Renan Philip, diretor de operações da IGC Brasil, parceira do Corinthians.

A eLaLiga tem 34 clubes, patrocínio de Santander e SmartBank, além de parcerias com marcas como Allianz, Hyundai, Visa, PlayStation e Movistar

O cronograma também precisa ser bem estabelecido para organizar a dinâmica de jogos e treinos de cada clube. No Flamengo, por exemplo, a equipe de Legue of Legends joga sábado e domingo e segunda é folga. Já na terça, a primeira parte do dia é reservada para conteúdo e, depois disso, até sexta os atletas realizam os treinamentos contra as equipes do Campeonato Brasileiro de League of Legends (Cblol). O modelo é de gaming office. Já a equipe de Free Fire do clube, que foi anunciada no início de agosto, por meio de uma parceria com a B4, tem o mesmo calendário, com a diferença de treinar e se instalar em uma gaming house.

Maior torcida do futebol brasileiro, o Flamengo emprestou popularidade também para suas equipes de e-sports. De acordo com a Pesquisa Game Brasil (PGB) 2020, o clube é o mais lembrado dos jogos eletrônicos no País. Realizada pelo Sioux Group, por meio da unidade de negócios Go Gamers, ESPM e Blend New Research, a 7ª edição da PGB ouviu 5830 pessoas em 26 estados e no Distrito Federal, no mês de fevereiro.

Visão legal em e-sports

A regulamentação ainda é uma lacuna a ser trabalhada no mercado de e-sports. Atualmente, as regras da modalidade se baseiam na Lei Pelé (Lei 9615/1998). De acordo com ela, os e-sports devem seguir as mesmas diretrizes aplicadas à outras modalidades esportivas, como o futebol, por exemplo, e em paralelo, os regulamentos internos de cada desenvolvedora ou produtora de conteúdo, sendo desnecessária a intervenção do Estado na autonomia do desporto eletrônico. Para André Feher (foto), advogado especializado em esportes, entretenimento e e-sports do escritório CSMV Advogados, é uma legislação transitória que se aplica principalmente para uma estabilidade maior no vínculo entre atleta e clube, prevendo ao menos elementos desportivos na relação trabalhista e de exploração de imagem, mas que carece de previsões intrínsecas ao esporte eletrônico. “Tais como a questão do registro de atletas e obtenção de visto de trabalho, forma de contratação dos atletas perante os clubes, equalização de multas nos contratos desportivos de trabalho, comissões de dopagem e resolução de conflitos a serem implementados pelas publishers, entre outros tantos pontos”, explica. Em sua visão, apenas a participação dos representantes dos setores que formam a indústria dos jogos eletrônicos legitimará uma regulamentação democrática e específica, coerente e eficaz, capaz de desenvolver este mercado de forma estruturada no país. Feher também acredita que a consolidação de uma regulamentação específica e uma estrutura uniforme de competições para este mercado seja o maior desafio atualmente, tanto do ponto de vista jurídico como de mercado. “Uma regulamentação que possui estabilidade e regras mais justas e inclusivas, que possa proteger o mercado de instabilidades e lacunas de equidade, certamente atrairá investidores com maior poder econômico, e assim, a injeção de valores para atingir o patamar que esse mercado tem de potencial”, conclui.

Mix de receitas
Várias receitas e recursos estão se desenvolvendo para colocar o mercado de e-sports em um próximo nível econômico. Segundo Leo di Prado, o Brasil tem clubes e atletas que já conquistaram grandes premiações no cenário mundial e competições nacionais. Ao conquistar o título mundial de Free Fire, no ano passado, por exemplo, o Corinthians faturou uma premiação de US$ 400 mil.

O CEO do Santos HotForex explica que as principais fontes de monetização dos clubes de e-sports são as verbas de participação em competições e eventos, as transferências de atletas e os patrocínios esportivos. Premiações de campeonato, ficam em grande parte com os atletas, e só são significativas para o clube quando significam valores altos. “Outras receitas como publicidade em vídeos e transmissões online em canais proprietários, conteúdo patrocinado, licenciamento, vendas de artigos em geral, vendas de ingresso, sócios-torcedores, ainda são incipientes, e tendem a crescer com o tempo”, analisa. Em 2020, a equipe da baixada santista teve como seus principais resultados financeiros a transferência de atletas e a chegada de patrocinadores que se juntaram ao clube, como HotForex, Evolut e Logitech.

O executivo também acredita as marcas já começaram a se posicionar neste mercado para pertencer e apoiar algo que grande parcela da população brasileira ama e consome diariamente, segundo ele: “os games e seus atletas profissionais”. A relação com as marcas geralmente se dá pelo patrocínio esportivo, podendo ter ou não permuta de produtos. E se houver uma narrativa que valide a conexão da marca com o público dos e-sports, a aceitação se torna ainda mais orgânica, de acordo com Leo.

Se esportivamente o Corinthians tem tido sucesso na modalidade, economicamente a equipe ainda passa por uma fase de prospecção, como conta Alex Watanabe. O profissional revela que já conseguiu realizar algumas integrações de marca, mas que o e-sports brasileiro ainda é um terreno desconhecido para a maior parte das empresas que não pertencem ou não tem proximidade com o universo gamer. A ideia da entidade esportiva é usar o alcance global do Corinthians para quebrar essa barreira. “Temos a nossa equipe de Free Fire com números de engajamento e torcedores maiores que das equipes de futebol da Série A do Brasileirão. E é um campo em que conseguimos atuar ainda mais diretamente na criação de conteúdo, junto com as marcas que querem e precisar dar esse passo junto conosco”, defende.

Patrocínios e parcerias de marca, além de premiações e licenciamento de produtos físicos e digitais são algumas das opções de receita da equipe. Com relação as entregas, Alex conta que a inteligência comercial conta com diversos pacotes, que vão desde patrocínio de fato, com integrações de logo e conteúdo, até ativações com jogadores como influenciadores e a utilização da equipe de conteúdo e social media do time como funil de branded content.

Já Leo di Prado lembra que o clube que tem equipe de e-sports insere a marca no dia a dia de um público que não é tão impactado por outros meios de comunicação tradicionais. “Além disso, o público valoriza as marcas que apoiam o que eles amam, e que permitem que as pessoas possam viver o sonho de se profissionalizar e viver com games”, acredita.

Principais desafios
Para os gestores que fomentam o e-sports no Brasil, o mercado nacional ainda está bem atrás dos países mais desenvolvidos, sobretudo os Estados Unidos. Ainda assim, houve um avanço interno significativo nos últimos anos. Leo lembra que hoje as principais organizações do País já possuem faturamento na casa dos sete dígitos, e convertem isto em estrutura profissional em seus diversos setores. Ele também alerta para a migração de grandes profissionais de outros mercados para o e-sports.

Renan Philip também acredita que a modalidade tem evoluído junto com o volume financeiro que o mercado gera. Ele avalia que o cenário atual possui equipes que captam investimentos maiores de marcas ou até de fundos de investimento do exterior e que possuem estruturas grandes com profissionais de diversos mercados. “Principalmente publicitários, que puxam o carro para que a indústria possa se estabelecer como fonte segura de integração e influência para marcas, desenvolvedores e torcedores que se conectam em volta da paixão do gamer”, analisa.

Diretor do projeto de esportes eletrônicos do Flamengo, Fred Tannure também enxerga o mercado em constante crescimento, mas faz uma ressalva. “É muito importante que as organizações juntem cada vez mais suas forças para que as instituições não se tornem reféns dos publishers que controlam tudo e muito menos de jogadores mimados ou de ego inflado”, pontua.

Flamengo transferiu alcance do futebol para suas equipes de e-sports: clube é o mais lembrado da modalidade no País, segundo pesquisa da Sioux

De modo geral, os dirigentes especializados acreditam que entre os principais desafios do mercado está o de crescer, se desenvolver, profissionalizar ainda mais as competições e as entregas de conteúdo, além de convencer as marcas que o patrocínio esportivo é a principal e mais completa forma de se posicionar na modalidade. “Com a expansão do cenário de e-sports mobile no Brasil, por exemplo, novas possibilidades surgiram. A barreira do hardware que afastava os jovens de periferia por falta de um computador potente vem caindo e dando espaço para um novo tipo de pro-player e também uma nova audiência, que antes não era impactada pelas competições mais tradicionais”, lembra Leo.

Sobre as oportunidades, os dirigentes acreditam que para marcas há um grande universo inexplorado de contato com jovens engajados. Para empreendedores, há muitas oportunidades em investimento nos clubes já existentes. E para profissionais que tem expertise no meio esportivo, o e-sports se tornará cada vez mais atraente.

Por fim, Alex Watanabe, do Corinthians, reforça que o público da modalidade já é numeroso, e que o próximo passo do mercado é lutar para encaixar seus assets com as estratégias de marcas, agências e anunciantes. “Acreditamos que mais marcas precisam quebrar a barreira do novo, começar a ativar e-sports e assim entender do que todos estão falando tanto. Assim, tendo essa fonte de receita mais estabilizada, o ecossistema como um todo, dos canais de transmissão aos jogadores, continuará se consolidando ainda mais”, finaliza.

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